Acredito que todo mundo, alguma vez na vida, já se perdeu em pensamentos distantes tentando imaginar como era a vida dos seus antepassados.

Histórias que carregam grande importância e significado.

Comigo, é claro, não é diferente! Hoje (02/07/17) pela manhã, como faço quase em todos os domingos, fui à casa da minha avó.

Estava tão frio! Minha vó Maria estava na cozinha começando a arrumar o café, quando de repente ela tocou no nome da avó dela – A minha trisavó Rita. Confesso que neste momento ainda estava desatento, mas me veio um estalo de curiosidade, nisso comecei a pedir para que ela me contasse um pouco o que ela sabia de minha trisavó, que não cheguei a conhecer, mas éramos próximos, não somente pela ligação sanguínea, mas por outros pontos incomuns, que vocês vão conhecer mais abaixo.

Eu me lembrava apenas que minha bisavó tinha sido escrava, mas, até então, nunca tive curiosidade de perguntar muita coisa. Porém, conversa vai, conversa vem, e ela começou a se lembrar das situações que muitas vezes escutou e até mesmo presenciou enquanto viveu com a sua vó Rita.

Pelos nossos cálculos Rita Maria de Jesus nasceu em Silveiras-SP por volta do ano de 1859, ou seja, foi escrava por um bom tempo, teve a maioria dos seus filhos ainda durante o tempo da escravidão, com exceção de Mario, que nasceu em 1899.

Conta minha vó Maria que a sua avó Rita foi escrava da Casa Grande. Sua lida era na cozinha, mas, em muitas vezes, também executou atividades na roça de cana e café, além do exercício de quitandeira, parteira, costureira e rezadeira.

Seu esposo, meu trisavô Manuel, teve uma história interessante, durante a Revolução de 1932, quando trabalhou para as tropas paulistas abrindo caminhos e picadas na mata.

Como hoje meu foco é registrar um pouco da trajetória da trisavó Rita, deixo a história de meu bisavó para outra hora.

Sabemos que os escravos, por muitas vezes, precisaram buscar brechas, mesmo que inconscientemente, para manterem vivas suas tradições, e com ela não foi diferente e muito daquilo que ela aprendeu durante o tempo da escravidão, foi levado para sua família. Mesmo que às vezes de forma mais leve, aparece nas coisas do dia-a-dia.

Com relação às curiosidades que envolvem os partos, minha avó contou fatos inusitados: como o caso de quando a criança não estava na posição certa, minha trisavó invertia a posição da brasa do fogão de lenha para que a criança ficasse na posição certa. Sabemos que isso faz parte das crendices populares, mas vale registrar momentos assim, em que a fé se fazia tão presente que tudo terminava por dar certo.

Ainda dentro das crendices, ela não comia carne na sexta-feira, em respeito ao sagrado, tinha este dia como um dia santo. Nos dias de hoje, temos uma só sexta-feira santa, mas para ela todas as sextas eram santas. Grande devota de São José tinha também grande devoção por Manuelina, uma santa que teve o início de sua devoção marcado nas Minas Gerais, pouco tempo depois da abolição. Não é uma santa da Igreja, mas uma santa do povo.

Um dos momentos que ela se sentia mais livre no seu tempo de escravidão, era quando as mulheres iam para perto do monjolo e lá se abriam, falavam dos problemas vividos, rezavam juntas e assim tinham força para continuar.

Mas era na cozinha que ela produzia as coisas que mais gostava, o feijão gordo, a feijoada, frango com macarrão, ensopado de carne de vaca, sem falar, é claro, no doce que ela mais gostava: a pamonha. Minha trisavó era também talentosa na música, tocava as canções com a palha do milho. Segundo minha avó, era como se estivem ouvindo um samba, pela sonoridade provocada, pelo instrumento que eles chamavam de paleta. Isso era mais comum durante as festas de São João e São Pedro, mas sempre que ela podia, encantava as crianças com essas músicas e com história de reis e rainhas.

Uma mulher que trazia consigo a sabedoria de uma anciã. Era, inclusive, a mulher mais velha de Silveiras no seu tempo, era obedecida por todos, era vista como segura e enérgica, porém tão alegre que ninguém desejava sair de perto dela. Rezadeira era também procurada constantemente para trazer conforto espiritual para famílias. E apesar de ser tão solicitada para resolver situações, quando as convenções sociais pediam ela recorria ao filho de mais posses, entendia que ele deveria resolver certas demandas. Seu filho, meu bisavô Mário, era a base da família, e nesses momentos em que era essencial que pelas convenções fosse a vez dos homens atuarem, era com eles que as coisas tinham que se resolver, mas também era ela que ele escutava, e de acordo com seus dizeres, ele realizava.

Minha trisavó Rita Maria de Jesus faleceu em 1943 aos seus 84 anos de idade. Protagonista de uma vida sofrida, porém muito bem traçada. Em sua trajetória, dedicou-se aos outros, fosse na escravidão, fosse no seu cotidiano de liberta, de forma despendida e dedicada. Pelo que é possível notar, por meio do breve relato que minha avó Maria me contou em sua cozinha, em uma conversa regada à saudade e café.

Fiquei com uma sensação de saudade, e apesar de não ter conhecido essa trisavó me senti de alguma forma protegido e abraçado por ela, enquanto ouvia essa história.

Enquanto historiador, sei que essa memória que eu apresento agora vem de forma simples, porém carregada de significados que um dia pretendo explorar.

Admiro a genealogia, mas a vejo como a geometria da história. Aos poucos estou descobrindo que ela não é para mim, não quero encontrar Reis e Rainhas, nas origens da minha família, o que quero é história de vida, é preservar para outros tempos memórias que poderiam se esgotar. Talvez minha missão possa parecer simples para os grandes mestres da academia, mas sinto que minhas contribuições caminham por essa trilha. Hoje relato ocorrido em minha família, mas o que amo é poder contar a história palpável, cheia de emoção, amor e carinho, coisas que poderiam ser varridas para todo o sempre levadas pelas areias que marcam o tempo.

Claro, que vejo a ciência ali, mas agora é hora de “dar voz” a anônimos, como a vó Rita, que até agora só estava na memória da sua neta, minha avó Maria.

Por último, ressalto que o site foi pensado, justamente, nesta intenção: transmitir de forma leve informações que um dia poderão auxiliar no caminho de alguns pesquisadores da micro-história ou história das migalhas.

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