O fantasma do museu de antropologia de Jacareí-SP
Por Ana Flavia Carvalho[1]
Diego Amaro de Almeida[2]
O século XIX é um tempo marcado pela escravidão e pela moral que obrigava a mulher a ser submissa aos homens – na primeira fase da vida, ao pai; e depois do casamento, ao marido.
Um exemplo é que, quando a mulher se casava, perdia o sobrenome do pai e ganhava o sobrenome do marido. Essa era uma forma sutil de dizer: o que antes era posse de um, agora se tornava posse do outro. Tanto o machismo quanto o racismo se escondem nas entrelinhas do que comumente chamamos de costume, e assim naturalizamos os erros do cotidiano social, que vez e outra surgem em ações, palavras, brincadeiras…
A história por trás da lenda que vamos revelar é rodeada por esses temas, e por isso é importante conhecermos a sociedade daquele tempo e jamais esquecermos que o que mantém uma lenda viva, mais que o medo que ela pode provocar, é seu sentido “educativo popular”. Neste caso uma lenda que serviu bem aos pais do século XIX e XX para conter a “desobediência” das filhas. Não que o ato de Gomes Leitão, que vamos tratar aqui, fosse ser replicado por outros pais, mas era o suficiente para garantir que a “desobediência” poderia trazer problemas para as mulheres que, por ventura, tentassem se opor à estrutura de mando dos pais e maridos, já que se tratava de um tempo em que a lei não punia de maneira adequada homens brancos da elite. Devemos lembrar que o direito foi feito por pessoas que dominavam a sociedade, e por isso, antes de tudo, era a esses homens que a justiça respondia, já que somente mais tarde é que teremos um direito humano.
João da Costa Gomes Leitão: o “coroné” de Jacareí.
Neste texto devemos tomar cuidado, devido aos fatos curiosos, e mesmo lendários, que cercam a vida de Gomes Leitão; afinal, queremos aqui falar de uma das filhas, porém é impossível falar da filha sem contextualizar o pai, que certamente tem uma história digna de filmes de horror, pois suas ações são densas e questionáveis, principalmente da forma que lidava com a família, o que certamente legou a ele um lugar entre as lendas. Podemos quase apostar que, se em Jacareí tiver um corpo seco, será de Gomes Leitão.
Gomes Leitão era o que popularmente se chamavam os senhores que tinham certo poder ou prestígio em suas localidades: “coronéis”, que mandavam e desmandavam nos lugares em que viviam. Lusitano, nascido em Braga – Portugal, em 1805, Gomes Leitão foi um grande proprietário de terras, comerciante e negociante de café, além de banqueiro, inspetor de obras, vereador, delegado e juiz. Apesar de não exercer função militar, era alferes da Guarda Nacional.
Neste ponto é importante lembrar: o passado é uma terra estrangeira, lugar em que as pessoas fazem as coisas de outro jeito. Acredita-se que sua fortuna se deva à prática que hoje conhecemos como agiotagem e ao tráfico de escravos. E, apesar de não existir proibição contra a escravidão, não podemos esquecer que no Brasil estava proibido o tráfico de escravizados africanos desde 1831, motivo que feria a idoneidade de Gomes Leitão, desqualificando-o para o recebimento de um título de nobreza, o que seria importante para que, além do poder que já possuía, conquistasse o prestígio de que só gozavam os nobres do império do Brasil. Não se tornando um titular, sua opção seria casar bem seus filhos e filhas.
Quadro Coronel Gomes Leitão – do Acervo do Museu de Antropologia do Vale do Paraíba – MAV.
Foto do Acervo do Diego Amaro de Almeida.
Reconhecido como grande escravagista no norte da província de São Paulo durante a década de 1860, após o término efetivo do tráfico negreiro, diversificou seus investimentos em empreendimentos, como a companhia de transporte fluvial entre Jacareí e Cachoeira, além de desempenhar um papel crucial na construção do trecho paulista da Estrada de Ferro São Paulo – Rio de Janeiro. Através de sua casa bancária, ele concedia empréstimos, muitas vezes garantidos por hipotecas de escravos ou propriedades.
Sua fortuna possibilitou a aquisição de diversas fazendas, como Velha, em São José dos Campos, Santo Antônio, Santa Clara; Monteiro, em Caçapava, Santo Agostinho; Rio do Peixe, em Santa Isabel, Caeté; Cachoeira, em Santa Branca; e Ribeirão da Prata, em Jacareí. Além disso, ele expandiu seu patrimônio com residências estratégicas, incluindo propriedades no Largo da Matriz, Vila do Patrocínio, Santos e na Rua da Candelária, no Rio de Janeiro. Vale ressaltar o imponente palacete situado na Rua da Ponte, conhecido como Solar Gomes Leitão, e sua propriedade de lazer no Bairro do São João, posteriormente renomeada como Chácara Xavier, onde costumava passar os fins de semana[3].
Sua residência é uma construção eclética, típica das construções do século XIX, ostentando sete janelas de frente, o que nesse tempo era um fator para se medir a riqueza do proprietário. Além disso, existem nesta casa porões secretos. Algumas história relatam que era um caminho secreto que levava até a Igreja em caso de necessidade de fuga de Gomes Leitão. Muitos dizem que era um sujeito paranoico e por isso agia com certa excentricidade; outras versões afirmam que o coronel escondia os seus escravos para negociar com os fazendeiros da região. Há ainda quem diga que ele possuía mais de 1 mil ao todo.
Foto: Fachada do Solar Gomes Leitão de Jacareí – Acervo Diego Amaro de Almeida
Foto: Diego Amaro em um dos acessos dos túneis da residência
Foto: Andréia Marcondes
De acordo com o autor Sérgio Lencioni , os fazendeiros e, em especial, os cafeicultores possuíam duas propriedades: uma nas fazendas e outra na cidade. O poder econômico estava refletido na casa assobradada e nos palacetes que, imponentes e luxuosos, como o Solar dos Leitões, demonstravam que viviam com luxo. As paredes eram revestidas com papel importado, móveis finos, quadros, pesadas cortinas, piso e forro de madeira trabalhados artisticamente, ícones do poder no século XIX.
Se queres casar bem, casa com teu igual!
Um velho ditado português diz: se queres casar bem, casa com teu igual. Esse ditado, de certa forma, mostra como o casamento era decidido de forma prática e, claro, pelo patriarca da família. E poderia ser um grande negócio, dependendo do noivo que estivesse disponível e de quanto poder financeiro o pai tinha para o dote da filha.
É certo que esse pensamento pairava na mente de Gomes Leitão; afinal, era o comum em seu tempo. Podemos dizer que ao menos um bom casamento ele realizou: o de sua filha Leduína Gomes com Antonio Moreira de Castro Lima, filho de um grande negociante lorenense e, mais tarde, Barão de Castro Lima. D. Leudina será conhecida Baronesa da Castro Lima, integrando uma das famílias mais importantes daquele tempo, composta por vários titulares do império. Inclusive, uma das filhas de Leduína, Risoleta de Castro, irá contrair núpcias com seu tio e, mais tarde, será agraciada com um título de nobreza, passando a ser conhecida como Condessa de Moreira Lima.
Porém, talvez o fato não se repetisse, não porque esse pai não buscava um casamento adequado para cada uma de suas filhas e filhos, porém uma de suas meninas resolveu se contrapor ao tempo e tentou assumir suas vontades.
Em meados do final de 1850 e começo de 1860, a filha mais bonita do “Coroné” Leitão teria se apaixonado por um rapaz pobre ou ajudou algum escravizado. Existem diferentes versões dos motivos, lendas dentro das lendas, porém o fato é que, enfurecido, o “Coroné” decidiu castigá-la, mas não de uma forma paternal, nem aos olhos do nosso tempo e nem mesmo aos olhos do século XIX. A desobediência da filha foi vista como desonra, sinal de grande desrespeito para o pai, e a punição era uma certeza.
A tal punição ultrapassou limites questionáveis em todo o tempo, mas que para uma pessoa como Gomes Leitão serviria de aviso para quem mais tentasse contra suas ordens.
Não mandou a menina para longe: convento, internato…, mas a manteve próxima de seus olhos, porém em uma condição na qual ela jamais o desobedeceria: emparedou a filha, que veio a óbito e, segundo a oralidade, estaria até hoje no mesmo lugar.
O emparedamento era algo comum nas ações de Gomes Leitão que, em nichos existentes nas paredes falsas da mansão, deixava seus escravos para engordar antes de vendê-los.
Nunca saberemos se esse pai se arrependeu dos graves delitos que cometeu. Tudo em sua história mostra um homem violento, rancoroso e vaidoso. Tão vaidoso que, depois de um problema de saúde que trouxe a ele certas impossibilidades, tentou suicídio, conforme publicado no Jornal Correio Paulistano de 31 de janeiro de 1872.
“Tentativa de Suícidio: Refere o Diário:
‘Em Jacarerhy tentou suicidar-se no dia 25 corrente o importante fazendeiro e capitalista João da Costa Gomes Leitão, disparando um tiro de revólver na região geniana, cuja bala, não tendo penetrado, ao que parece, até o crâneo, e nem talvez ofendido órgão importante, não causou a morte instantânea, sendo infelizmente provável que venha, afinal, sucumbir, não obstante os socorros da medicina aplicados pelos doutores Luiz P. Barreto e Nyvi.
Atribui-se este facto lamentável a um extravio na razão, consequência de uma paralisia que o acometeu há quatro meses’” (Transcrição da notícia).
Uma tentativa fracassada, pois o Coronel Leitão viveu até o ano de 1879, quando veio a óbito em sua residência, no município de Jacareí.
Um fantasma entre as paredes!
Hoje a antiga residência abriga o Museu de Antropologia do Vale do Paraíba – MAV. E muitas lendas e histórias assombradas são contadas sobre as “aparições” e situações experienciadas por aqueles que trabalham e visitam o local.
Segundo a tradição oral, os guardas que cuidam do lugar veem uma linda moça subindo e descendo as escadarias com um luxuoso vestido longo de renda e segurando um castiçal com três velas acesas, além de escutar um piano tocar sozinho, ouvindo vozes, choros, calafrios e barulhos inexplicáveis. Desde então, não há mais segurança noturna, pelo fato de todos terem presenciado experiências sobrenaturais.
Tais aparições seriam de uma de suas filhas, aquela que tentou desobedecer ao pai e foi emparedada. Alguns estudos apontam que a filha que foi emparedada pelo Coronel Leitão seria Jesuína Gomes da Conceição Leitão. Pelos registros históricos, Jesuína é uma das filhas que não se casou (pois teria mais sentido ser a moça da lenda).
Sabe-se pouco, ou quase nada, sobre a sua vida, mas podemos dizer que a sua educação não era muito diferente das filhas de fazendeiros do século XIX, as conhecidas sinhás do século XIX que davam aulas de francês, piano, literatura, costura, pintura… Enquanto os filhos aprendiam engenharia e coisas do tipo.
Escrever sobre as verdades de uma lenda nunca será tarefa fácil, pois sempre existirá uma linha tênue entre a realidade do fato e as fantasias das aparições. Porém o ponto forte que não podemos esquecer é: mesmo que o fantasma não exista, a lenda existe, é real e faz parte do cotidiano e do imaginário popular.
Referências
ALMEIDA, Diego Amaro. A loira do banheiro – A dama e o conselheiro. Guaratinguetá: AnnaBella Editorial, 2022.
GABRIEL, Sônia. Mistérios do Vale – História que o povo conta no Vale do Paraíba, Serra da Mantiqueira e Litoral Norte Paulista. Guaratinguetá: Penalux, 2016.
LENCIONI, Benedicto Sérgio. Jacareí – Sua História: iniciação ao estudo histórico de Jacareí: J.A. Cursino & Editores, 2015.
PASIN, José Luiz. Os Barões do Café – Titulares do Império no Vale do Paraíba Paulista. Aparecida: Vale Livros, 2001.
PATROCINIO, Ana Luiza (2003), Homens – Livres, Escravos e Senhores no Município de Jacareí de 1840 a 1870. Dissertação de Mestrado/ PUC/SP.
PRADO, Fernado Romero. João da Costa Gomes Leitão. Jacareí, 4 de fev de 2018. Disponível em: <https://www.sitedejacarei.com.br/joao-da-costa-gomes-leitao/>. Acesso em: 30/09/2023.
[1] Graduanda em História do Centro UNISAL de Lorena.
[2] Mestre em História pela PUC-SP e Professor do Centro UNISAL de Lorena.
[3] Disponível em: <https://www.sitedejacarei.com.br/joao-da-costa-gomes-leitao/>. Acesso em: 30/11/203.