Por Ana Flávia Carvalho[1]

Diego Amaro de Almeida[2]

 

“Nos arredores da Igreja de Santa Rita ainda se pode ouvir,

madrugada adentro, a passagem da carruagem que conduz

a benemérita Inês Teodora […]”

(Tom Maia)[3]

 

Guaratinguetá: a vida cotidiana da mulher e seus aspectos sociais, históricos e econômicos nas primeiras décadas do século XVIII.

Em um tempo em que a educação para mulheres se restringia a uma educação religiosa e voltada às obrigações do casamento, surge uma senhora, que não é única, mas que representa mulheres que, mesmo obrigadas à submissão, encontravam caminho para sua atuação nos problemas do cotidiano, onde eram obrigadas a romper com a estrutura do patriarcado e viver as coisas de dentro e fora da casa[4]. Uma situação que se dava principalmente em momentos de viuvez[5] – o que nos leva a pensar: durante a infância, a mulher era controlada pelo pai; posteriormente, controlada pelo marido… em caso de viuvez, talvez o único momento de liberdade em que não seria vista com os “maus olhos” de uma sociedade, faria com que fosse muito difícil a busca por um novo casamento, e não eram raras as viúvas que seguiam até a morte sem se casar novamente, sem nos esquecermos de que, pelo costume da época, as mulheres se casavam muito jovens, com 13, 14 anos, pois já tinham atingido uma maturidade biológica; e os homens, por volta de 30, 35 anos, pois estavam em um auge de melhores condições financeiras, o que tornava o casamento um negócio prático[6].

 

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Entrada de Guaratinguetá – Aquarela de Thomas Ender, 1817[7]

 

O cenário em que Dona Ignez Theodora viveu foi retratado pelo pintor austríaco Thomas Ender. Podemos perceber os aspectos da antiga Vila de Santo Antônio de Guaratinguetá e ter uma ideia do lugar onde viveu esta senhora, que deu vida a uma importante lenda urbana deste município. Guaratinguetá, que vivia interessantes tempos de mudança, conectada ainda a uma economia de subsistência que abastecia os tropeiros que percorriam os caminhos do ouro, já possuía algumas produções de destaque nas mãos do Capitão-Mor Manuel José de Melo, o mais rico fazendeiro dessas terras naquele tempo, e sem dúvidas a maior produção de gado vaccum, item que garantia excelente ascensão financeira, tanto que mais tarde, em 1822, irá receber para pernoite e jantar de gala o futuro imperador do Brasil D. Pedro I[8]. Entre outros, se destacam também o Capitão Lourenço Lemes Barbosa e Capitão Antônio dos Santos Silva, ambos grandes produtores de açúcar e aguardente. O vigário da matriz de Santo Antônio era o padre português Francisco da Costa Moreira.

 

De benemérita à assombração: Dona Inês Theodora de Jesus da Silva Antunes

Não importa a existência do fantasma, a realidade da experiência está na lenda que é contada e transmitida, a qual impacta na vida dos indivíduos e na história de uma sociedade[9].

A construção da Igreja de Santa Rita de Cássia, no século XIX, deve-se a Inês Teodora, filha do português Alferes Antônio José da Silva Antunes e Dona Marcelina Freire de Jesus.

 

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Igreja de Santa Rita.

Foto: Diego Amaro de Almeida – 24/04/2007

 

Nascida em 20 de julho de 1773, em Guaratinguetá, casou-se em 22 de julho de 1788, aos 15 anos, com o Capitão e negociante Vitoriano José da Costa, natural do Rio de Janeiro. Pouco sabemos da vida da virtuosa Inês, senhora muito piedosa e com profundos sentimentos religiosos. Fato que foi traduzido em sua dedicação assertiva a um projeto audacioso, a construção da Igreja que até hoje faz parte do cenário do município e da memória do bairro Santa Rita. Vencendo o tempo e permitindo que hoje possamos rememorar os feitos do passado que imortalizam seus idealizadores no próprio patrimônio.

De acordo com Aydano Leite[10], Inês gerou dez filhos, porém, em sua genealogia, encontramos somente nove filhos: Antônio Francisco das Chagas Paula, Padre João Euzébio de Assunção, Vitoriano José de Oliveira Costa, Capitão Gregório José de Oliveira, que foi um dos chefes da revolução de 1842, em Pindamonhangaba, Ana Quirina da Trindade, Rita Custódia de Jesus, José Joaquim de Oliveira Semique, Francisco José da Costa Vitoriano e Manoel Casemiro da Costa. Inês ficou viúva em 1811, quando passou a se ocupar apenas de atividades religiosas e educacionais.

Devota de Santa Rita, não tardou a se dedicar à construção da igreja, junto com o auxílio das esmolas do povo e com o uso de mão de obra escravizada. A Igreja foi inaugurada em 1846, e até hoje se destaca, imponente, no bairro de Santa Rita, em Guaratinguetá, que, além de custear todo o empreendimento, destinou parte de suas terras para este fim.

 

Imagem de Santa Rita no altar-mor da Igreja.

Foto: Diego Amaro de Almeida em 24/04/2007

 

Construída em taipa de pilão, sua planta apresenta uma nave central e duas laterais, sobre as quais situam-se dois corredores. A fachada foi decorada com uma profusão de elementos, como frontões triangulares, pilastras com capitéis coríntios, guirlandas, além de outros relevos em massa (LEITE, 1967).

Sobre o seu falecimento, que ocorreu dois anos mais tarde, em 8 de março de 1848, em sua chácara, situada no bairro de São Gonçalo, temos duas histórias: uma defendida pelo professor Aydano Leite, que diz que a causa de sua morte se presume a um câncer. Vestida com simplicidade com o hábito de Irmã terceira de São Francisco, sabemos que Dona Inês Teodora foi sepultada em catacumba na parede lateral da sacristia da Igreja que ajudou a construir, sendo o enterro acompanhado solenemente com música, terminando com o recitativo de quatro momentos pelo Vigário da Paróquia, Padre Martiniano. A Igreja possui uma sala de homenagem à sua construtora, no local onde Inês Teodora foi sepultada.

 

 

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Lápide na parte de trás do altar-mor da Igreja de Santa Rita.

Foto: Diego Amaro de Almeida em 24/04/2007

 

Em sua descrição, em latim, na lápide está escrito: Hic sita est Agnes Theodora Silva. Quae Templum Beate Ritae Fundavit. Requies Clamito Precesque Supplex Fi Agito, que significa Inês Theodora Silva está aqui. Fundadora do templo da bem-aventurada Rita. Você vai descansar orando e suplicando.

Entre 1910 e 1911, a Igreja foi reformada por Benedita de França Lopes, ocasião em que o piso original da nave, em assoalho, foi substituído por ladrilho hidráulico e, no telhado, introduzidas calhas.

Personalidade sempre ativa, Inês zelava pela religião, pelo povo e a Igreja. Teve seu nome mantido, de forma interessante, pelas gerações que sucederam, dando origem a uma nova lenda urbana. E não devemos esquecer que toda lenda tem um fundo “pedagógico” educativo, no sentido de ensinar ou de proteger usando o artifício do medo.

Neste sentido, entendemos que, na intenção de preservar a Igreja e seu espaço, uma lenda seria interessante para dissuadir aqueles que, por ventura, tivessem algum tipo de má intenção com aquele espaço e também como uma forma de as mães manterem seus filhos em casa.

Alguns dos lugares em que viveu D. Inês, como um sobrado perto do beco da Santa Rita e o chafariz de sua chácara, que é no bairro do Pedregulho, em Guaratinguetá, ainda existem. Eles são patrimônios que, além da Igreja, fazem parte dessa memória, assim como as terras que hoje dão lugar ao hospital Frei Galvão. Segundo a lenda, em certas noites, os moradores do bairro acordam com o ruído de uma carruagem percorrendo suas ruas, andando da sua antiga chácara até a igreja que construiu.

Contam que, recentemente, um casal observava a Igreja e, encantados com o lugar, foram em direção a uma senhora vestida de freira que estava em frente e a observavam com atenção; logo, foram pedir informações. Ao se aproximarem da senhora, ouviram um enorme barulho e se distraíram; ao voltarem os olhos, ela havia desaparecido em meio à noite escura.

Em outra situação, conta que todos os dias uma senhora simples ia até um dos comércios de Santa Rita e humildemente entregava algumas moedas ao dono do estabelecimento, pedindo que ele oferecesse algum alimento a um necessitado que por ali passasse, e isso aconteceu por vários dias. O estranho era as moedas utilizadas por essa senhora, pois se tratavam de peças antigas, dinheiro que estava fora de circulação há muito tempo. Devido à humildade da senhora, o comerciante atendia ao pedido, mas ficava sem entender o que se passava. Até que soube da lenda de D. Inês Teodora.

O fantasma existe? Nunca saberemos, mas a lenda é verdadeira, e essas histórias que dão vida ao imaginário dos indivíduos em nosso tempo.

 

Referências

ALMEIDA, Diego Amaro de. A loira do Banheiro – A Dama e o Conselheiro. Guaratinguetá-SP: AnnaBella Editorial, 2022.

ALMEIDA, Diego Amaro de. Maria Joaquina de Almeida – A senhora do café. Cachoeira Paulista: MTB 2016.

GABRIEL, Sônia. Mistérios do Vale – Histórias que o povo conta no Vale do Paraíba, Serra da Mantiqueira e Litoral Norte Paulista. 3. ed. Guaratinguetá-SP: Penalux, 2016.

LEITE Aydano. Vultos do Presente e do Passado. Subsídios para a história de Guaratinguetá. Cruzeiro: Gráfica e Editora Liberdade. 1967.

NAZZARI, Muriel. O Desaparecimento do Dote – Mulheres, família e mudança social em São Paulo, Brasil, 1600-1900. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

MALUF. Mariana. Ruídos da Memória. São Paulo: Siciliano, 1995.

MUSEU FREI GALVÃO. Guaratinguetá: ontem & hoje. São Paulo: Noovha América, 2010.

SODERO TOLEDO, Francisco et. al.. 1822 – Café e a Jornada da Independência. Jundiaí-SP: Paco Editorial, 2022.

[1] Graduanda em História do Centro UNISAL de Lorena.

[2] Mestre em História pela PUC-SP e Professor do Centro UNISAL de Lorena.

[3] GABRIEL, Sônia. Mistérios do Vale – Histórias que o povo conta no Vale do Paraíba, Serra da Mantiqueira e Litoral Norte Paulista. 3. ed. Guaratinguetá-SP: Penalux, 2016.

[4] MALUF. Mariana. Ruídos da Memória. São Paulo: Siciliano, 1995.

[5] ALMEIDA, Diego Amaro de. Maria Joaquina de Almeida – A senhora do café. Cachoeira Paulista: MTB 2016.

[6] NAZZARI, Muriel. O Desaparecimento do Dote – Mulheres, família e mudança social em São Paulo, Brasil, 1600-1900. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

[7] MUSEU FREI GALVÃO. Guaratinguetá: ontem & hoje. São Paulo: Noovha América, 2010.

[8] SODERO TOLEDO, Francisco et. al.. 1822 – Café e a Jornada da Independência. Jundiaí-SP: Paco Editorial, 2022.

[9] ALMEIDA, Diego Amaro de. A loira do Banheiro – A Dama e o Conselheiro. Guaratinguetá-SP: AnnaBella Editorial, 2022.

[10] LEITE Aydano. Vultos do Presente e do Passado. Subsídios para a história de Guaratinguetá. Cruzeiro: Gráfica e Editora Liberdade, 1967.

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