“O passado é uma terra estrangeira; lá eles fazem as coisa de outro jeito”
L. P. Hartley.
Mesmo sendo, por muitos anos, relegada a um segundo plano pela historiografia brasileira, a mulher sempre desempenhou importante papel nos acontecimentos históricos, muitas vezes até mesmo como personagem principal. Somente em meados dos anos de 1960, a mulher começou a ter seu espaço reconhecido na educação, no trabalho e na política, sendo notada como agente social também responsável pelo desenvolvimento cultural e econômico da nação, confirmando sua importante presença na sociedade. Essa posição, entretanto, começa a ser claramente delineada a partir de 24 de fevereiro de 1932, quando as mulheres casadas, solteiras e viúvas com renda própria passaram a ter direito ao voto.
Foi nesse processo que Dona Carlota Pereira de Queiroz foi eleita deputada federal, marcando, assim, novos horizontes para a mulher brasileira e garantindo força aos futuros movimentos feministas que passaram a lutar por outros tantos direitos, no trabalho, na economia e na política. Por outro lado, também pesquisando revoluções, guerras e outros acontecimentos conseguimos notar a firme participação feminina no decorrer da história.
Se as mulheres ocupavam papel secundário no cenário político nacional, sua participação na Revolução Constitucionalista de 1932 revelou uma presença mais efetiva e firme, até então não notada. Proferiu, certa vez, o governador Pedro de Toledo, ao Diário Nacional, um discurso do qual destacamos:
Antigamente, quando os homens embarcavam para os campos de batalha, suas mulheres choravam, gritando em altos brados de desespero. Pois bem, desta vez, elas foram deixar na estação os seus noivos, maridos e irmãos, estimulando-os assim: Vai morrer por São Paulo, mas também mata!
A bravura da mulher paulista teve então um lugar de destaque. Ela foi um elemento ativo cumprindo o papel de mantenedora da ideologia do grupo paulista, enaltecida por sua abnegação, desprendimento e espírito de renúncia, incentivando seus filhos e maridos à luta.
Na região vale-paraibana não foi diferente a participação da mulher, que teve papel ativo, porque, mesmo não tendo colocado as mãos em armas, deu todo o suporte necessário para a realização da revolução. Várias foram então as formas de chamar o apoio das mulheres para a revolução: um exemplo foi um cartaz no qual aparecia uma mulher envolta apenas pela bandeira paulista, com os braços levantados, tendo em suas mãos um punhado de joias resplandecentes. Esse era um símbolo que levava as mulheres a doarem seus bens preciosos para a causa paulista.
Nas cidades isso era feito com propagandas, em panfletos como os que constam em documentos existentes no arquivo do Museu Frei Galvão. Segue, abaixo, um exemplo:
Lançado no dia 25 de agosto de 1932, pelo tenente José Sombra, é um apelo para que as mulheres ocupem os lugares dos homens em seus empregos, assegurando sua carreira e trabalho enquanto estivessem em campos de batalha. Além de destacar a abnegação e patriotismo da mulher guaratinguetaense, o panfleto ainda salientava o quanto a oportunidade e o gesto seriam nobres e gratificantes para as mulheres: um trabalho nobilitante que se oferece às dedicadas moças de Guaratinguetá. Assim, por conta dos acontecimentos históricos, é aberto um espaço para que as mulheres comecem a busca por seu lugar no mercado de trabalho, mostrando-se competentes e capazes para a realização dos serviços antes executados pelos homens.
A esse respeito, a pesquisadora Dóli Ferreira de Castro apresenta um interessante estudo, no qual destaca o engajamento das mulheres no movimento e as atividades que executavam, fosse substituindo os homens, fosse em atividades que a sociedade caracterizava como exercício predominantemente feminino:
Mas as mulheres também disseram “presente” e assumiram funções a elas afeitas pela tradição social: enfermeiras, costureiras, bordadeiras, cozinheiras e até outras, menos valorizadas. As mães de família engajadas estimulavam companheiros, filhos e irmãos. Até crianças participavam levando mensagens (FERREIRA, 2012).
Interessante observar no convite às normalistas a participação da mulher para despertar a coragem dos combatentes que passavam por Guaratinguetá. É fato notório que a presença feminina revolve os sentimentos viris nos homens: bravura, firmeza e constância tão necessárias nos conflitos bélicos que se iniciavam. Para este sentido, as mulheres são conclamadas a partir da memória paulista de coragem e intrepidez: os bandeirantes. Inseridas no imaginário paulista, as normalistas (moças jovens, portanto) são colocadas como herdeiras dos desbravadores dos séculos passados, no momento que destacava São Paulo como defensor da lei e da verdade.
O convite foi encaminhado no dia 12 de julho de 1932 por José Scarmmelli, diretor da Escola Normal e membro da Comissão Cívica Local, por ocasião de um comício em favor dos ideais da revolução, já em curso, para a reconstitucionalização de São Paulo. Pelos termos empregados, verifica-se que a proposta é feita de modo direto: sem acanhamentos, o documento revela como a mulher paulista é inserida no contexto beligerante.
O engajamento da mulher guaratinguetaense na Revolução de 1932 também pode ser verificado no acervo do Museu Frei Galvão a partir de dois livros nos quais os cidadãos de Guaratinguetá se comprometiam a dedicar todos os seus esforços em favor da Constitucionalização do Brasil, ainda que pela via revolucionária. Ambos os livros, datados de 12 de julho de 1932, contêm igualmente as assinaturas de mulheres participantes, de alguma forma, das atividades exigidas pelo momento.
Livro 1
14 – Maria Prudencia de Vasconcellos
15 – Octavia de Barros
16 – Maria de Lourdes Teixeira
17 – Marisa Palura
39 – Maria Galvão Nogueira
51 – Aradia Ulorais
52 – Wania Ella Carvalho
53 – Maria José de Alburquerque
54 – Stella Arnaud
77 – Geralda Pasin
83 – Maria Arlette Silva
84 – Maria Corina Silva
93 – Maria Candida Pereira
110 – Nina Leite
111 – Aurea Leite
112 – Sofia Barbosa
113 – Dalila Rosais
115 – Rosa Macedo
116 – Iracema Ferreira
117 – Laire F. Gonçalves
119 – Maria Augusta Godoy
120 – Francisca de Paula Castro
121 – Eunice Gonçalves
129 – Maria de Lourdes Palma
130 – Maria do Carmo Rangel de Carvalho
131 – Cecilia de Souza Oliveira.
132 – Virianhinha Gonçalves
133 – Mariana Antunes da Silva
Livro 2
47 – Maria da Gloria C. Costa
48 – Gilda M. De Rezende
49 – Stella Marcondes Rosaes
51 – Maria Antonia de Vasconcellos
56 – Dinorah Varella Querido
57 – Senhora Dr. Venancio Ayres
58 – Filinha Galvão Bueno
62 – Nelina
63 – Maria José Monteiro
Ainda a partir do acervo do museu, é possível verificar que a participação das mulheres se deu nas mais diferentes atividades: na enfermagem, na alimentação e nas oficinas de costura, onde podiam atender às necessidades dos combatentes e se dedicar a preparar uniformes para os soldados. Segundo dados do Diário do Comércio, de julho de 2012, estima-se que havia 17 oficinas, com 343 máquinas, e que o número de mulheres que trabalhavam nos domicílios era de 3.873. Para transporte e serviços humanos havia 209 moças. Tal equipe teria possibilitado a confecção e distribuição de 51.756 fardamentos.
Do mesmo modo, é possível verificar a participação das mulheres de Guaratinguetá componentes da Liga das Professoras Católicas. Empenhadas num verdadeiro recolhimento de orações, também faziam visitas aos lares dos combatentes, a fim de levar aos seus familiares assistência material e moral. Conforme Nagiba Maluf: Nem se sabe quem mais combatia e vencia: se os homens em armas, lutando, ou as mulheres ajoelhadas, rezando (MALUF, 1986).
Os pesquisadores Thereza e Tom Maia, responsáveis pela vida longa do Museu Frei Galvão e por grande parte de seu acervo, confirmam a participação de Guaratinguetá na mobilização paulista e lembram que, devido à posição geográfica da cidade, temia-se que a região viesse a ser um dos principais pontos de reação do Governo Federal, além de destacarem que permaneceriam em Guaratinguetá marcos e memórias como os Batalhões Frei Galvão e Rodrigues Alves, formados por voluntários responsáveis pela vigilância do município e da Serra da Mantiqueira. Marcando a participação feminina, havia a Casa do Soldado, sob a direção de senhoras e senhoritas, criada para o atendimento dos soldados em trânsito ou acantonados na cidade, com sede na Associação Comercial e Empresarial de Guaratinguetá. Outros marcos e registros históricos apontados por Thereza e Tom Maia são: os Hospitais de Campanha e Cruz Vermelha, instalados em vários prédios e escolas da cidade, como na Escola de Farmácia (atual Prefeitura Municipal), no Grupo Escolar Flamínio Lessa e na Escola Normal Conselheiro Rodrigues Alves; os postos de abastecimento, que se encontravam no Clube Literário, no Mercado Municipal e nas casas das famílias Rangel de Camargo e Rodrigues Alves; e ainda as trincheiras feitas na Fazenda Três Barras, no bairro da Rocinha, na Colônia do Piagui, no Engenheiro Neiva e próximas ao Bairro do Campinho.
Nas diferentes manifestações femininas sobre o engajamento e adesão à causa revolucionária, nada mais contundente do que a carta, também do acervo do museu, que transcrevemos a seguir. Há que observar a firmeza e tenacidade de quem escreve, ao mesmo tempo encorajando e, é de pasmar, suspirando por não poder realizar o desejo de participar mais efetivamente do movimento, atuando inclusive no front. O documento fala por si:
19.8.32
Querido Chico
Como vais? Bem, não é? Eis o que peço a Deus. Hoje recebemos notícias de tio Chico, pelo rádio: está bom, e manda lembranças. Chico, estou com tanta vontade de ver finda esta revolução, para mostrarmos, assim, o valor do povo paulista… Francamente, queria ser homem, para lutar por São Paulo. Também queria ir ao campo de combate, e dali voltar vitoriosa, porque eu sou paulista, e tenho na mente o mesmo ideal. Viva São Paulo! Viva São Paulo! Eu quero que logo venhas, juntamente com todos os outros paulistas, cantando a glória de São Paulo, tão grande e poderoso.
Viva São Paulo!
Adeus, Chico
Lembranças do Pessoal
Um abraço da
Didi
Silvia vai bem
11 h da manhã.
O registro da hora em que foi escrita a carta demonstra a riqueza do acervo histórico do Museu Frei Galvão, além de, evidentemente, todo o conteúdo apaixonado e, ao mesmo tempo, firme e objetivo.
A mobilização das mulheres foi sem dúvida uma das marcas da Revolução de 1932. Não é exagero arriscar que, talvez, sem o empenho e dedicação das mulheres, o movimento da revolução tivesse se encerrado ainda antes e os homens tivessem esmorecido diante do desafio dos combates. Mas, ao contrário, seguiram em frente lutando por seu ideal e incentivados por suas esposas, namoradas e mães.
Se o movimento revolucionário foi certo ou errado, jamais saberemos, e não cabe aqui julgá-lo, uma vez que o que se pretende é a recuperação dos dados históricos, sua interpretação e compreensão – aqui o verdadeiro ofício do pesquisador e historiador. Os documentos existentes, e a muito custo mantidos no Museu Frei Galvão, contando com o trabalho e dedicação incansáveis de mais uma mulher guaratinguetaense, Thereza Maia, estão à espera de leituras mais profundas sobre a Revolução de 1932 e a participação da mulher de Guaratinguetá – dedicada e incansável.
Este texto foi retirado da obra A Revolução de 1932 no Acervo do Museu Frei Galvão – Reconstrução da Memória Regional, publicada em 2013 e organizada pelo Prof. Me. Antonio Tadeu de Miranda Alves. O texto específico faz parte de um capítulo escrito por Diego Amaro de Almeida.
Referências bibliográficas
BROCA. Brito. Memórias. Rio de Janeiro; Ed. José Olympio. 1968.
COUPÉ. Benedito Dubsky. Vento Rio Acima. São Paulo; Editora e Gráfica Vida e Consciência. 2008.
MAIA. Thereza e Tom. Guaratinguetá – Ontem e Hoje. São Paulo; Noovha America. 2010.
MALUF. Nagiba Maria Rizék. Revolução de 32 – o que foi, por que foi. São Paulo; Edicon. 1986.