Por Diego Amaro de Almeida

 

“Monteiro Lobato – estilo navalha, estilo clava, estilo pelúcia – tem no diabólico prestígio de sua pena um mágico poder de sedução às vezes perigoso. Com tais artimanhas, tece seus períodos, o que nosso espírito neles se enrosca, se prende; é como um aranhol para mosquitos incautos…”

(Menotti Del Picchia, 1920. apud NICOLA, 2021)

 

O objetivo não é condenar a obra de Anita Malfatti ou as críticas de Monteiro Lobato, mas trazer à reflexão alguns episódios que podem ter auxiliado na aurora do movimento que culminou na Semana de Arte Moderna de 1922. E ainda analisar, mesmo que superficialmente, algumas questões do gênero feminino que são percebidas na crítica aplicada por Monteiro Lobato. Por último, apresentar alguns poucos dados biográficos de Anita que poderão nos auxiliar nesta proposta de reflexão sobre o movimento modernista e o gênero feminino, muitas vezes subjugado pelos costumes de uma época.

É de costume popular dizer: o problema não é a crítica e sim o que fazemos dela. Além disso, existe o peso de quem realiza a crítica. Nesse caso, ser criticado de forma positiva ou negativa por alguém com a repercussão de Lobato pode ser uma chance única de alçar voos mais altos. Claro que para ele, um realista e vanguardista, o modernismo que suplantaria seu estilo, talvez, tivesse dificuldade de admitir “louros” do movimento que nascia. Mas o fato de estar na “mira” da sua pena nos faz pensar sobre as qualidades que essa pessoa tinha, ao ponto de chamar sua atenção, mesmo que negativamente.

Certo de que a epígrafe deste texto nos provoque, devido ao seu caráter crítico, uma defesa das críticas do escritor taubateano, a forma com que Menotti Del Picchia apresenta Monteiro Lobato demonstra, em afirmações claras, que Lobato era um crítico assertivo, duro e perigoso. Mas também dá traços de uma personalidade altamente respeitada em seu tempo, alguém a quem “todos”, de alguma maneira, escutavam.

A famosa crítica de 20 de dezembro de 1917 não foi a primeira deferida por Monteiro Lobato, já que uma anterior fora realizada por ele para comentar um trabalho da pintora. Pouco antes, em 18 de outubro de 1917, o escritor preparava pesquisa e material para uma obra que seria lançada em 1918 intitulada “O saci-pererê: resultado de um inquérito”. Em consonância com seus esforços para a pesquisa, promoveu um concurso de arte para definir como seria o “saci”. Anita Malfatti participou deste concurso e apresentou a seguinte obra:

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Imagem 01: O saci, Anita Malfatti, óleo sobre tela. 1917

Fonte: <http://ver-anitamalfatti.ieb.usp.br/>.

 

A comissão julgadora era formada por Monteiro Lobato, Amadeu Amaral e Wasth Rodrigues. E mesmo não sendo premiada, teve as impressões de Lobato sobre sua obra, publicada na Revista do Brasil.

A sra. Malfatti também deu sua contribuição em ismo. Um viandante e o seu cavalo, em pacato jornadear por uma estrada vermelha, degringolam-se numa crise de terror ao deparar-se-lhes pendente duma vara de bambu uma coisa do outro mundo. Degringola-se o cavaleiro, degringola-se o cavalo, tentando arrancar-se do pescoço, o qual estira-se longo como feito da melhor borracha do Pará. Gênero degringolismo. Como todos os quadros do gênero ismo, cubismo, futurismo, impressionismo, marinetismo, está “hors-concours”

(Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq24029906.htm>. São Paulo, Quarta-feira, 24 de Fevereiro de 1999).

Logo as atitudes de Monteiro Lobato poderiam levar alguém ao apogeu ou à queda na carreira artística e literária. Um perigo iminente na vida daqueles que iniciavam ou buscavam solidificar suas carreiras.

Anita Malfatti talvez não tenha sido a pessoa que mais sofreu com as críticas de Lobato, já que sua obra permanece e a torna um ícone de seu tempo.  E devido à repercussão positiva da continuidade do trabalho da artista, é que essa crítica também se torna célebre. Afinal, quem sobrevive à pena ferina de Monteiro Lobato?

 

Paranoia ou Mistificação?

Esse é o título apresentado por Monteiro Lobato (2008) em sua obra “Ideias de Jeca Tatu”, quando faz nova alusão a uma crítica feita às obras da pintora Anita Malfatti, em 1917, alguns anos antes da celebrada Semana de Arte Moderna de 1922. No dia 20 de dezembro de 1917, o jornal Estado de São Paulo publica sua crítica “severa” à obra da pintora. No entanto, tal crítica trazia à tona sua visão com relação aos movimentos que passaram a fazer parte do “mundo” artístico do início do século XX. O próprio jornal, anos mais tarde, em sua edição de 11 de fevereiro de 2022, admite que a crítica pode ter sido o despertar do movimento que culminou na Semana de Arte Moderna de 1922.

O texto do escritor sobre a exposição dos trabalhos da pintora Anita Malfatti é considerado um marco da cultura brasileira e tido como um dos fatores que desencadeou o movimento que resultaria na Semana de Arte Moderna de 1922 (O ESTADO DE SÃO PAULO, 2022).

Sendo ou não o despertar do movimento, uma coisa é certa: essa crítica foi um duro golpe na carreira de Anita Malfatti, pois a forma como Lobato tratou sua arte trouxe graves prejuízos ao seu trabalho. Segue a matéria vinculada na revista ISTO É (2017):

A primeira consequência dessa hostilidade foi sentida no bolso: cinco das oito telas compradas foram devolvidas. “Com o correr das semanas, havia tal ódio geral que um amigo de casa ameaçou meus quadros com a bengala, desejando destruí-los”, contaria Anita nos anos 1950 (ISTOÉ, 2017).

Esse, sem dúvidas, é o primeiro sinal dos danos que seriam provocados por essa crítica, sem esquecer que nesta época o autor de “Cidades Mortas”, “Jeca Tatu”, “Sítio do Picapau Amarelo”, entre outras obras já era reconhecido no meio editorial. E com sua influência poderia ser um ponto negativo na carreira de quem estivesse na sua “mira”.

Com relação às suas críticas, não escapavam nem “alvos” nem “leitores”, pois esses acabavam seduzidos pela forma como Lobato as apresentava, sempre muito bem fundamentado de referências e com peso poético envolvente

Embora eles se deem como novos precursores duma arte a vir, nada é mais velho do que a arte anormal ou teratológica: nasceu com a paranóia e a mistificação. De há muito que a estudam os psiquiatras em seus tratados, documentando-se nos inúmeros desenhos que ornam as paredes internas dos manicômios (LOBATO, 2008. p. 75).

Neste trecho da crítica, podemos perceber repulsa de Monteiro Lobato em relação “àquilo” em que a arte estaria se transformando. Para ele, de certa forma, se a arte representa os sentimentos, a sensibilidade… o que acontecia neste momento, na realidade demonstra algum tipo de transtorno e não a realidade que ele esperava que fosse retratada, já que entendia que a arte deveria manter a representação daquilo que a servia como inspiração.

Quando fazemos a leitura integral da crítica, é possível perceber que seu alvo principal eram escolas do fazer artístico que começavam a ganhar espaço e a se espalharem pelo mundo.

As medidas de proporção e equilíbrio, na forma ou na cor, decorrem do que chamamos sentir. Quando as coisas do mundo externo se transformam em impressões cerebrais, “sentimos”. Para que sintamos de maneira diversa, cúbica ou futurista, é forçoso ou que a harmonia do universo sofra completa alteração, ou que o nosso cérebro esteja em desarranjo por virtude de algum destempero. […] Estas considerações são provocadas pela exposição da senhora Malfatti, onde se notam acentuadíssimas tendências para uma atitude estética forçada no sentido das extravagâncias de Picasso & cia (LOBATO, 2008, p.  74).

Lobato ainda apresenta sua visão sobre Anita Malfatti. Neste ponto da crítica existe uma intenção em valorizar a técnica, mesmo existindo a discordância da obra. Monteiro Lobato vai adiante e acredita que as pessoas não abrem os “olhos” de Anita por ela ser mulher, e por isso falham com a artista.

Essa artista possui talento vigoroso, fora do comum. Poucas vezes, através de uma obra torcida em má direção, se notam tantas e tão preciosas qualidades latentes. Percebe-se de qualquer daqueles quadrinhos como a sua autora é independente, como é original, como é inventiva, em que alto grau possui uma tantas qualidades inatas, das mais fecundas na construção de uma sólida individualidade artística (LOBATO, 2008, p. 74).

Por tanto, apesar da crítica, consegue reconhecer os traços do talento de Anita. Neste ponto, talvez possamos reconhecer que a crítica se dá por condições de “gosto” do crítico, tendências particulares e subjetivas do que podemos entender como “boa” arte e não pela falta de talento da artista. A crítica, como já citada, ainda discute questões relacionadas ao gênero feminino e mostra como é percebida a visão da atuação das mulheres nos espaços e as relações entre homens e mulheres em seus espaços de atuação. No entanto, coloca em cheque o discernimento da artista com relação à sua escolha de estilo, de certo modo, também negando que a “moça” não teria condições de fazer uma escolha clara e racional do caminho que buscou seguir.

Entretanto, seduzida pelas teorias que ela chama arte moderna, penetrou nos domínios dum impressionismo discutibilíssimo, e pôs todo seu talento a serviço de uma nova espécie de caricatura. Sejamos sinceros: futurismo, cubismo, impressionismo e tutti quanti não passam de outros ramos da arte caricatural. É a extensão da caricatura a regiões onde não havia até agora penetrado. Caricatura da cor, caricatura da forma – mas caricatura que não visa, como a verdadeira, ressaltar uma ideia, mas sim desnortear, aparvalhar, atordoar a ingenuidade do espectador (LOBATO, 2008, p. 75).

Essa sedução provocada pela ideia de uma nova arte, na visão de Monteiro Lobato, retirava de Anita Malfatti condições de colocar seu talento em obras que realmente valessem a pena na visão do escritor, e que, de certa forma, isso ocorria em decorrência de uma ilusão provocada pelos elogios feitos por “falsos” amigos e críticos que não levavam a sério o trabalho executado por mulheres, como se as protegessem das críticas por pertencer ao gênero feminino, ainda considerado frágil e sensível naquela época. No entanto, Lobato via em Anita uma grande expressão, e por isso entendia que o que estava fazendo era abrir seus olhos para a “verdadeira” arte, conforme podemos observar no trecho abaixo:

O verdadeiro amigo de um pintor não é aquele que o entontece de louvores; sim o que lhe dá uma opinião sincera, embora dura, e lhe traduz claramente, sem reservas, o que todos pensam dele por detrás. Tal cavalheirismo é falso; e sobre falso nocivo. Quantos talentos de primeira água não transviou, não arrastou por maus caminhos, o elogio incondicional e mentiroso? Se víssemos na senhora Malfatti apenas a “moça prendada que pinta”, como há por aí às centenas, calar-nos-íamos, ou talvez lhe déssemos meia dúzia desses adjetivos – bombons que a crítica açucarada tem sempre à mão em se tratando das moças (LOBATO, 2008, p. 77).

Quando chegamos a esse ponto da crítica, percebemos que Lobato parece querer abrir os “olhos” da pintora. No entanto, não podemos negar que existe um fator subjetivo com relação à compreensão do que é a arte. O fato principal é que esta crítica trouxe problemas para Anita Malfatti e ao próprio Monteiro Lobato. No final, a grande maioria dos modernistas e aspirantes ao modernismo se voltou contra o crítico. A crítica, apesar de ter trazido prejuízos, aproximou a artista dos grandes nomes daquele momento, que trouxeram na capa de suas publicações telas da pintora.

Segundo o escritor Paulo Rezzutti (2018), “realmente, Monteiro Lobato estava certo, Anita Malfatti não era apenas ‘uma moça que pintava’. Era uma artista formada na Europa e nos Estados Unidos e ligada à vanguarda internacional da arte […]”. Ainda segundo Rezzuti, “[…] a elite paulista ainda não estava preparada para a arte de Anita” (p. 226).

 

Anita Malfatti e as cores: o trágico, porém mágico nascimento de uma pintora modernista

Não é novidade para nós que a vida cotidiana das mulheres sempre foi marcada por desafios. Por séculos, viveram sob o controle masculino, que vinha pelas mãos da lei ou da moral cristã da época. Cercadas por impossibilidades, muitas encontram pequenas brechas para alcançarem independência e reconhecimento. Sabemos que às mulheres o voto só passou a ser um direito com a Constituição de 1934, o que postergou ao máximo a participação efetiva delas em diferentes esferas que não fosse a do lar.

Mesmo compreendendo que há exceções por força das questões do cotidiano, ainda assim, sem representação, havia dificuldade para a ascensão das mulheres em espaços tidos como masculinos, ainda que haja alguns expoentes do gênero feminino. Porém, no início do século XX, com o Brasil republicano se afastando da Igreja Católica e, por consequência, da moral cristã, surgiam novas oportunidades às mulheres, oportunidades efetivas e não casuais, como durante o século XIX. O Brasil já se mostrava distinto para as mulheres. De certo modo, o estilo promovido com a modernização do Brasil foi um momento em que começamos a ter notícia de um número mais expressivo de escritoras e o ingresso de mulheres em escolas superiores, o que passou a oportunizar novos espaços no mundo do trabalho (HAHNER, 2003, p. 182).

 

Uma breve biografia de Anita Malfatti

Filha do engenheiro italiano Samuel Malfatti e da norte-americana Eleonora Elisabeth, Anita iniciou seus estudos no Externato São José. Com o falecimento do pai, ainda na infância da pintora, sua mãe e seus irmãos se mudam para a casa da avó materna, em Barra Funda, São Paulo. Sua mãe, que tinha laços com a vida artística de São Paulo, também é diretora de uma escola, algo que fugia aos costumes daquele tempo, pois das mulheres até se esperava essa atuação, mas antes do casamento, entretanto, o fato da gestão era algo que ia além do aceito pela sociedade da época. Neste sentido, sem dúvidas, a mãe foi uma importante influência na vida da pintora, que passou por inúmeros sofrimentos.

De acordo com o escritor Paulo Rezutti (2018, p. 226), “o que pouca gente sabe é que ela era canhota. […] nasceu com uma malformação da mão direita, passou por cirurgia reparadora, mas teve de aprender a fazer as coisas e, futuramente, a pintar com a mão esquerda. Disfarçava a mão deformada com lenços coloridos”.

Segundo a própria Anita, em Conferência realizada na Pinacoteca do Estado de São Paulo em 1951:

Pensava e pensava; comecei a lecionar e sempre em pensamento, durante e depois do trabalho eu só queria estudar pintura. Minhas colegas, as mais chegadas, todas casando-se muito moças, não entendiam meu desejo – tinham pena de eu não pensar em casamento

(Disponível em: <http://ver-anitamalfatti.ieb.usp.br/>, 2022).

No entanto, ainda em relatos de Anita Malfatti, conseguimos perceber que a descoberta do talento não foi algo tão espontâneo. Sentindo-se perdida com relação às escolhas que deveria realizar, ainda muito jovem, aos treze anos, se colocou frente a frente com a morte, em uma tentativa desesperada para realizar sua descoberta. Inicialmente não sabemos os motivos que a levaram a uma decisão tão exagerada, porém o tempo vivido pela menina nos faz pensar que, ao ver sua mãe em destaque em meio a uma sociedade masculinizada e ao mesmo tempo conviver com essa cultura que tirava das mulheres sua liberdade, legando a elas ainda somente o casamento, pode ter sido o fator que provocou o episódio relatado por ela ao jornalista Luiz Martins, em 8 de dezembro de 1939:

Eu tinha 13 anos. E sofria, porque não sabia que rumo tomar na vida. Nada ainda me revelara o fundo da minha sensibilidade, o pequeno gênio dos destinos terrestres não me segredava ao ouvido o caminho que deveria seguir. Resolvi, então, me submeter a uma estranha experiência: sofrer a sensação absorvente da morte. Achava que uma forte emoção, que me aproximasse violentamente do perigo, me daria a decifração definitiva da minha própria personalidade. E veja o que fiz: nossa casa ficava perto da estação da Barra Funda. Um dia saí de casa, amarrei fortemente as minhas tranças de menina, deitei-me debaixo dos dormentes e esperei o trem passar por cima de mim. Foi uma coisa horrível, indescritível! O barulho ensurdecedor, a deslocação de ar, a temperatura asfixiante deram-me uma impressão de delírio e de loucura. E eu via cores, cores e cores riscando o espaço, cores que eu desejaria fixar para sempre na retina assombrada. Foi a revelação: voltei decidida a me dedicar à pintura. E hoje, tantos anos passados, tenho a serena certeza de não me ter enganado. O meu caminho estava certo (Luiz Martins, Em São Paulo, com Anita Malfatti. Vamos Ler!, RJ, 8/12/1939. Disponível em: <https://jornal.usp.br/cultura/ver-anita-malfatti-a-pintora-brasileira-esta-no-ar/>. Acesso em: 20.03.2022 às 9h13).

Não nos cabe julgar a decisão tomada. No entanto, devemos lembrar aos leitores da tragédia que algo desta natureza causaria. Nunca iremos enaltecer esse ato como algo corajoso devido à sua natureza arriscada. Porém, foi neste episódio que a pintora nasceu, e essa sim trouxe com coragem a expressão da sua arte. Enfrentando muitos críticos, claro que Lobato deve ter sido incômodo, porém desafiador.

 

Considerações Finais

É quase inquestionável que as críticas de Monteiro Lobato aproximaram Anita Malfatti dos modernistas que provocaram a Semana de Arte Moderna de 1922. Situação que comprovamos, por exemplo, ao verificar que autora participou da produção das capas de livros de ícones do Movimento de 1922 e, por ironia ou não, em essas capas eram em obras publicadas por modernistas, como no caso da obra de Menotti Del Picchia pelo Monteiro Lobato & C Editores.

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Imagem 02: Capa do livro “O Homem e a Morte” de Menotti del Picchia,

editado por Monteiro Lobato e capa de Anita Malfatti.

Fonte: <https://www.catalogodasartes.com.br/>

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Imagem 03: Capa do livro “Os Condenados”, de Oswald de Andrade.

Capa de Anita Malfatti.

Fonte: <www.rmgouvealeiloes.com.br>

 

Com isso, podemos compreender que, ao produzir suas críticas, o próprio Monteiro Lobato criou um ambiente que favoreceu a pintora, realmente aproximando-a de nomes significativos. Sem dúvidas, algo que por próprio mérito já faria. Suas técnicas, inclusive, foram elogiadas pelo próprio Lobato. No entanto, a crítica faz com que outros passem a notar o talento da artista, o que dará a ela rápida notoriedade. Não podemos esquecer que Monteiro Lobato fazia parte de outro movimento, que tinha o realismo com base para as suas produções. E aqueles que assumiam a vanguarda percebiam o grande talento de Anita Malfatti.

Para Mário de Andrade, outro grande expoente da Semana de Arte Moderna de 1922, seu afastamento do grupo de modernistas se deu pelos excessos de obstáculos que a faziam ter que, por vezes, fazer escolhas difíceis para continuar negando, em sua percepção, a própria criatividade e talento. Lembra, em uma carta enviada no dia 1º de abril de 1939, que a pintora foi vítima de um ambiente hostil e que teve muitos contra ela, inclusive a família. Ela é questionada com relação à mudança de rumo, indagando no que as mudanças melhoram a vida e arte de Anita. Cobrou-a de ter sido ela mesma e se desculpou por tudo que trazia naquela carta, porém declarou o quanto apreciava a alma admirável da amiga (NICOLA, 2021, p. 114).

Quanto à forma que Anita Malfatti lidou com as críticas de Monteiro Lobato e outros, podemos ver em suas próprias palavras, em trecho de depoimento realizado no salão de Maio de 1939.

Devemos ir ao encontro da arte com despreocupação e com espírito livre e nunca com pequenos prejuízos e preconceitos artísticos. A visão torna-se sempre obscurecida com os óculos da opinião alheia. A arte moderna é a expressão do indivíduo de hoje. Ninguém ainda soube criticar um trabalho de inspiração individual; pois não havendo precedentes, só poderiam limitar-se ao insulto (MALFATTI. A, 1939 apud NICOLA. J, 2021, p. 113).

E compreensível essas concepções de Anita, realmente a arte é algo do indivíduo que reproduz o que sente e como percebe o mundo, sem talvez nunca ser compreendido, a não ser por aquele que a produziu. Aos críticos, talvez as técnicas caibam como foco do seu observar, mas ao conteúdo, esse só pertence ao indivíduo. Da mesma forma podemos compreender que o que sinto ao observar uma obra, o sentimento que em mim é provocado, é único também. O artista não agrega à sua obra um manual de instruções com relação ao que devemos sentir, e, assim como o autor, nossa percepção é filha de um tempo, contexto e cultura. Devemos lembrar também, assim como essas linhas que escrevo agora me pertencem até aqui, que depois elas serão propriedade de quem as ler e interpretar a partir de si o que foi exposto.

Em nenhum caso podemos nos ater aos críticos ou à opinião pública, mas sim mantemos o discernimento, produzimos antes e primeiro para nós mesmos: para nossas dúvidas, para nossas angústias, para as nossas paixões, na esperança de quem sabe um dia servir a alguém como impulso, conforto e acolhida. As artes, a música, a literatura, a poesia… antes de tudo, servem a quem cria, e quem cria não tem controle da ação que será promovida e nem deve ser sua preocupação, ao contrário, não seria a materialização de sentimentos, e sim produtos a serem expostos em prateleiras. Que se venda a materialização dos sentimentos, mas porque são remédios na cura das dores da alma.

 

Referências

BROCA, B. A vida literária no Brasil – 1900. 5. ed. Rio de Janeiro: José Olympio: Academia Brasileira de Letras, 2005.

HAHNER, J. E. Emancipação do Sexo Feminino: a luta pelos direitos da mulher no Brasil, 1850 – 1940. Florianópolis: Ed. Mulheres; Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2003.

LOBATO, M. Ideias de Jeca Tatu. São Paulo: Globo, 2008.

LOBATO, M. O Saci-Pererê: resultado de um inquérito. São Paulo: Globo, 2008.

NICOLA, J. NICOLA, L. Semana de 22. Rio de Janeiro: Estação Brasil, 2021.

REZZUTTI, P. Mulheres do Brasil: a história não contada. Rio de Janeiro: LeYa, 2018.

 

 

Web Bibliografia

Anita Malfatti, a pintora brasileira está no ar. Disponível em: <https://jornal.usp.br/cultura/ver-anita-malfatti-a-pintora-brasileira-esta-no-ar/>. Acesso em: 20.03.2022 às 9h13.

Há 100 anos crítica de Monteiro Lobato acuava Anita Malfatti. Disponível em: <https://istoe.com.br/ha-100-anos-critica-de-monteiro-lobato-acuava-anita-malfatti/>.

O texto de Monteiro Lobato contra Anita Malfatti. Disponível em: <http://m.acervo.estadao.com.br/noticias/acervo,leia-o-texto-de-monteiro-lobato-contra-anita-malfatti-em-1917,70003974798,0.htm>.

<https://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq24029906.htm>. São Paulo, Quarta-feira, 24 de Fevereiro de 1999.

<https://www.catalogodasartes.com.br/>.

<www.rmgouvealeiloes.com.br>.

<http://ver-anitamalfatti.ieb.usp.br/>.

 

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