Ao longo de nossa existência, aqui e ali, vamos tendo encontros com o acaso. A princípio, certos “encontros” são vistos por nós como peças que não tem nenhuma conexão com a nossa vida. Contudo, o tempo se encarrega de nos mostrar o quanto estávamos errados. Isto ocorreu comigo por ocasião do meu primeiro encontro com um trabalho de Péricles Eugênio, ainda que não fosse o seu nome o que primeiro me chamou atenção no frontispício do livro (adquirido por mim em uma feira literária).

Pois bem, corria o ano de 2003 e acontecia a primeira Feira Literária Internacional de Paraty (FLIP). Naquele ano, eu resida nesta agradável cidade do litoral fluminense. Todos aqueles que conhecem um pouco do quotidiano de Paraty sabem que mesmo as pessoas que não estão envolvidas com a cena cultural acabam por se interessar por promoções desta magnitude no campo da produção literária. Uma sucessão de palestras e discussões com a participação de autores de renome internacional, oficinas literárias e eventos paralelos para crianças (Flipinha) e jovens (Flipzona) tornaram a feira um sucesso até os nossos dias.

Em uma das noites da FLIP, na companhia de meu pai, eu caminhava incerto pelos inúmeros estandes de livros de títulos diversos. Eis que em dado momento, o meu olhar se deteve sobre uma obra que continha as Poesias Completas de Álvares de Azevedo. Era uma edição crítica, muito bem elaborada por Péricles Eugênio da Silva Ramos, sendo que bastou um rápido exame da obra para que eu me visse compelido a adquiri-la.  Sem saber, naquele momento a minha história começava a se aproximar da história do genial Péricles e de sua amada terra natal, Lorena/SP, que tantas vezes foi tema de suas inspiradas poesias. Mal sabia eu que tempos depois eu iria cursar História na “Terra das palmeiras Imperiais” e mais alguns anos iria ter a honra de presidir a própria Academia de Letras de Lorena.

Eu confesso, a princípio, o que mais me chamou atenção foi o fato da obra conter as poesias de Álvares de Azevedo e não a chancela de renomado crítico literário construída por Péricles Eugênio da Silva Ramos. Ocorre que naquele tempo meu poeta favorito era Álvares de Azevedo, que apesar de existência breve (21 anos), foi um autor muito prolixo e inspirado. Sua poesia ultrarromântica e melancólica, versando muitas vezes sobre o frustrado jovem apaixonado que namora a ideia da morte na esperança de assim ter a atenção da pessoa amada, é bem típica do “mal do século” que assola nossos corações em certos momentos da juventude. Mas nada que o tempo não cure!

O certo é que embalado pelas páginas da obra crítica feita pelo poeta lorenense eu acabei enveredando por outras da obra produzidas por sua “pena”. Assim, quando menos percebi, eu já estava interessado em ler suas poesias e curioso com a história deste lorenense que de um dos mentores da “Geração de 45”. Em suma, por acaso, foi após adquirir sua edição crítica da antologia poética de Álvares de Azevedo é que acabei me transformando também em um admirador de sua admirável obra.

Feita esta pequena introdução, meu propósito nas linhas que se seguem não é aqui escrever uma extensa biografia que faça justiça a ilustre figura que foi Péricles. Aliás, eu diria que esta seria uma pretensão descabida, em face de em tão poucos parágrafos, ser alguém capaz de retratar com fidelidade toda a singularidade e valor da contribuição ofertada a nós pelo fabuloso poeta lorenense. Mas, quando estamos próximos de comemorar o centenário do seu nascimento em 2019, aqui quero deixar a minha homenagem a este homem que fez a diferença em seu tempo e apresento um pouco daquilo que consegui conhecer dele nas inúmeras obras que nos legou e no testemunho daqueles que tiveram a fortuna de conviver com ele.

Péricles Eugênio da Silva Ramos foi aluno do tradicional Colégio São Joaquim, de Lorena/SP, mantido pelos padres salesianos. Lá, ele recebeu de seus colegas a alcunha de “Minerva”, a deusa da sabedoria para os gregos, tamanho era seu amor pelos estudos. Foi aluno de ilustres mestres que lecionavam no renomado colégio lorenense e o estimularam a progredir nos estudos. Um deles foi o Padre Ravizza, que em suas aulas perscrutava as raízes do idioma e estimulava seus alunos para a leitura dos clássicos latinos e gregos; outro mestre singular foi o Padre Renaudin, que motivou o ainda imberbe estudante Péricles a traduzir autores como Shakespeare, Virgílio, François Villon, Keats, Lord Bayron, Shelley e outros renomados escritores mundiais. (EVANGELISTA, 1991).

Ainda com relação as recordações de Péricles do seu tempo de ginásio, destaco também as aulas de inglês no antigo chalé (que deu origem ao Colégio São Joaquim), além dos colegas ilustres que faziam parte do seu círculo. Em um depoimento que ele deu ao Prof. José Geraldo Evangelista, Péricles afirmou que:

 

“Nossa turma em geral deu médicos, advogados, parlamentares (como o deputado federal José Pinheiro Machado), secretários de Estado. Pelo Ginásio, ao nosso tempo, passou um aluno que viria a ser o Presidente da República, Jânio Quadros, de uma turma pouco anterior a minha.”

 

Ele ainda encerra seu depoimento com a seguinte ideia:

 

Logo viria a Faculdade, mas o Ginásio foi a espinha para nossa formação intelectual: para tudo o que pudermos ser e fazer, foi ele que nos deu a base – sólida, firme, luminosa.” (EVANGELISTA, 1991, p. 326).

 

Péricles Eugênio teve uma vida dedicada à literatura, tendo recebido inúmeros grandes prêmios e honrarias. Os maiores foram os prêmios “Jabuti”, da Câmara Brasileira do Livro, e o “Machado de Assis”, da Academia Brasileira de Letras e claro, a honraria de ter se tornado “Imortal” da Academia Paulista de Letras como sucessor de Sérgio Milliet. Interessante: o próprio Milliet o havia ajudado a impulsionar sua carreira como poeta.

O poeta lorenense foi multifacetado, com inúmeras e variadas ocupações. Péricles também era advogado e estudou na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Também exerceu muitas funções públicas de prestigio, mas nós não iremos aqui nos concentrarmos nessa parte da vida, apesar de entendermos a relevância desta fase. Mesmo assim, aqui merece a menção do fato dele ter sido o primeiro secretário executivo do Conselho Estadual de Cultura de São Paulo, criador do Museu de Arte Sacra, do Museu da Imagem e do Som e da Casa Brasileira.

Além de suas poesias, Péricles também realizava a tradução de grandes nomes da literatura internacional.  Como tradutor, ele verteu para o português os versos de William Shakespeare, Stéphane Mallarmé, François Villon, Luís de Góngora, Byron, James Gould Cozzens e outros. Porém, modestamente, ele entendia as limitações deste oficio e assim o resumia:

 

Praticamente é impossível, nas traduções de qualquer língua para o português, preservar todos os valores do original. Formalmente, o metro nem sempre pode ser guardado, ou o ritmo; para conservar as rimas, tem-se muitas vezes, de parafrasear ou resumir o pensamento do autor. Traduzir é, antes do mais, compreender; mas ninguém pode garantir que nossa compreensão do texto seja exata ou ainda a única exata. (RAMOS, 1970, p.5)

Tal fala demonstra o quanto ele era um intelectual preocupado com a qualidade do seu trabalho de tradutor. Transformar sensações vertidas de uma língua estrangeira em palavras do português que contivessem rima e métrica, era a sua dedicação. Tudo para que outros, mais tarde, pudessem ter o prazer de beber nestas fontes antes inacessíveis por não estar no seu idioma pátrio.

Assim, a sua maior preocupação era captar o mais elevado número possível e denotações do original em língua estrangeira, o que implicava a preservação do significado básico dos vocábulos e transposição integral das imagens, bem como sua interpretação dos versos.

Segundo Moacir Amâncio, em matéria publicada no jornal o Estado de São Paulo de 16 de maio de 1992, “Péricles Eugênio da Silva Ramos esteve na busca da visão estrutural. Em suas mãos, a expressão poética ganhou concretude e mensurabilidade. Ele ajudou a afastar a análise literária dos extremos do historicismo, do psicologismo e do sociologismo, para encaminhá-la a sua condição de verdadeira ciência da linguagem. “

Em carta enviada a Péricles Eugênio, em 27 de fevereiro de 1961, Drummond, escreve o seguinte com relação a obra Lua de Ontem:

 

[…] sem lhe dizer da boa e pura emoção municipal que seu livro despertou neste incurável homem do interior. Que rapsódia você dedicou à sua terra, e com que perfeição de artista, ligada à segurança do historiador! Lorena deve sentir-se feliz por ter sido assim cantada.

 

Ainda referente a sua consagrada obra “Lua de Ontem”, em 1960, os editores da José Olympio escreveram em sua apresentação:

 

“Os poemas deste livro [Lua de Ontem] em sua quase totalidade se referem a pessoas e fatos reais. Sua expressão é acessível ao leitor comum, já que é poeta e pretendendo celebrar sua cidade, se dirige a uma audiência que deve compartir a celebração. Essa audiência, todavia, não é restrita; falando de sua cidade, o poeta fala de todas as cidades, atingindo a linha do permanente e do universal. Daí o interesse do presente livro, cheio do terno e do emocionado resplendor dos dias idos.”

 

A partir de 1966, leciona literatura portuguesa e técnica redatorial na Faculdade de Comunicação Social Cásper Líbero. Partilha assim com a juventude o seu vasto cabedal de conhecimentos.

O poeta Péricles Eugênio da Silva Ramos faleceu em 14 de maio de 1992, vítima de uma pneumonia. Segundo relato da sua filha Eliana Maria da Silva Ramos, contido no Jornal Folha de São Paulo de 15 de maio de 1992, ela encontrou sobre a mesa de trabalho do pai vários textos de poetas franceses e ingleses, que ele pretendia reunir em uma nova antologia. Isso mostra entre todos os seus feitos que verdadeiramente ele era um incansável artífice da palavra e que viveu isto de maneira intensa, produzindo e lutando para ver concretizado seus ideais. Hoje, passados tantos anos de seu falecimento, seu nome ainda é lembrado pelos filhos de sua cidade e comemorado por toda uma geração de lorenenses que guardam com carinho a memória deste talentoso poeta.

 

P.S. Não pude aqui deixar de compartilhar com os leitores deste texto uma preciosidade da lavra do jovem Péricles Eugênio da Silva Ramos e praticamente desconhecida. Trata-se de um conto escrito por ele quando ainda era estudante (do 2º Ano Ginasial ”B”) do então Ginásio São Joaquim e publicado em 1932 no jornal interno daquele estabelecimento de ensino lorenense.

 

O chacal e o lagarto 

(Interpretação)

 

Certo chacal, estando roído pela fome, saiu à procura de alimentos; foi, porém tão infeliz que só achou um par de botinas, que, por serem de couro rigidíssimo, não pôde roer.

Decidido a tirar partido delas, o famulento chacal achou-as jeitosas para um par de brincos.

Entusiasmado com a sua ideia, reuniu todos os ossos que achou e com eles construiu um pedestal rebocado de lama, à beira do tanque onde os animais iam saciar sua sede. Então, à guisa de soberano em seu sólio, assentou-se no pedestal e a todo animal que chegava ordenava recitar uma estrofe de sua lavra, a qual era a seguinte:

 

          “De prata, ornado de ouro, é o pedestal.

          Tem nas orelhas brincos sem igual,

          E pessoa real.”

Até mesmo o tigre real, tomando aquilo por brincadeira repetiu os versos do chacal, que ficou intumescido de orgulho. Mas eis que, na penumbra do arvoredo, o chacal divisou a figura preguiçosa do lagarto que se encaminhava para a lagoa, porém, sem a mínima vontade de prestar homenagens ao presumido animal. Já o sáurio ia encostando a boca na água, quando arrogante o chacal lhe falou:

 

– Alto lá! Não sabes que para poderes beber desta agua é preciso recitar estes versos?

 

          “De prata, ornado de ouro, é o pedestal.

          Tem nas orelhas brincos sem igual,

          E pessoa real.”

 

– Pois bem, disse o lagarto, deixe-me que eu beba e depois recitarei esses lindos versos; agora estou um tanto rouco, ao passo que depois de ter bebido recitarei com voz forte adequada às tonalidades deles.

O chacal consentiu e o lagarto bebeu tanta água que parecia querer sugar toda a lagoa. Já o carnívoro estava espantado com aquilo, quando o réptil parou de beber e foi tratando de se pôr ao largo.

 

– Então, disse-lhe o chacal, não vais recitar os versos?

– Ia-me esquecendo, respondeu o lagarto, mas, como são mesmo os versos?

 

E enquanto perguntava, cada vez mais se punha ao largo.

 

O chacal repetiu novamente.

 

– Já compreendi, murmurou o lagarto, e começou a recitar:

 

          “Os ossos com lama fazem pedestal

           Por brincos, chancas trazidas de um curral,

           Não passa de um chacal”

 

E deu as de Vila-Diogo.

O chacal permaneceu estarrecido ao ouvir tais verdades, que ele reputava graves injurias; porém, não permaneceu muito tempo assim, e deitou a correr em perseguição do lagarto, apanhando-o pela ponta da cauda quando o sáurio entrava na sua cova. Então é que foi puxar, cada qual para o seu lado, de sorte que ao cabo de algum tempo lagarto sentia a sua calda quase arrancada e o chacal via a hora em que seus dentes voariam das gengivas.

De repente, o lagarto lembrou-se e uma ardil para livrar-se dos dentes do chacal, e com a voz mais dulcíflua que possuía disse ao presumido animal:

 

– Amigo, largue-me a cauda para que eu possa sair e recitar os versos que você me ordenou.

 

Mais que depressa, o chacal largou-lhe a cauda, enquanto que o lagarto sumia na escuridão da cova, dizendo zombeteiramente:

 

“Ossos com lama fazem pedestal

            Por brincos, chancas trazidas de um curral,

            Não passa de um chacal.”

 

Referências:

AZEVEDO, Álvares de. Poesias Completas – Álvares de Azevedo; edição crítica de Péricles Eugênio da Silva Ramos; org. de Iumma Maria Simon. Campinas/SP, Ed. da UNICAMP; São Paulo/SP, Imprensa Oficial do Estado, 2002.

EVANGELISTA, José Geraldo. História do Colégio São Joaquim. São Paulo/SP, Editora Salesiana Dom Bosco, 1991.

SHAKESPEARE, William. Sonetos Shakespeare; tradução e apresentação de Péricles Eugênio da Silva Ramos. Rio de Janeiro/RJ, 1970.

RAMOS, Péricles Eugênio da Silva Ramos. O chacal e o lagarto (Interpretação). In: O Gremio – Órgão dos alunos do Ginásio M. São Joaquim. Lorena/SP, ANO XXII – Num. 4 – maio 1932 – p. 12.

______. Lua de Ontem. José Olympio, 1960.

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